Texto indicado por um Antropólogo, Professor e Amigo meu, que diga-se de passagem, tem um belo nome. Vale a pena ler e ver o quanto essa greve foi importante para se discutir coisas muito mais basilares relativas as Polícias Militares do Brasil.
Luiz Eduardo Soares
(Antropólogo, escritor, ex-secretário nacional de segurança pública)
Mais uma vez, o Brasil discute segurança pública na crise. A Bahia está convulsionada e a consciência nacional contempla o enigma sob fogo cruzado. PM em greve, selvageria nas ruas, saques, medo, mortes. Cenário para músculos e paixões, pouco afeto à inteligência. Na crise, quem manda é a crise, com sua dinâmica inconstante e imprevisível. A questão corrente é: o que fazer, agora? Quando o doente está na UTI, a urgência exige mobilização de todos os recursos disponíveis para salvá-lo. Não é momento para seminários e filosofia. Entretanto, será preciso atravessar o dia seguinte com os olhos postos no futuro e a pergunta decisiva: o que fazer para evitar crises cíclicas desse porte? O que as motiva? Como reverter suas causas? Já houve dezenas como esta, nos últimos vinte anos.
O governo estadual denuncia o vandalismo da insurreição armada e tenta reafirmar sua autoridade. A União presta a assistência possível na emergência, deslocando tropas e o ministro da Justiça. A categoria rebelada denuncia salários indignos e condições de trabalho aviltantes. Critica a omissão dos poderes públicos. Aponta a falta de perspectivas, na medida em que o Congresso se esquiva e não vota a PEC-300, que criaria um piso salarial nacional, com base no que paga o DF. Parlamentares e governos estaduais contra-argumentam, indicando as limitações orçamentárias: a magnitude da reivindicação corporativa expressa na PEC é tal que, aprovada e aplicada, quebraria os Estados.
O que dizer sobre esse vozerio desencontrado, cheio de som e fúria? Todos têm razão; ninguém tem razão. Explosões violentas são inaceitáveis; condições trabalhistas ultrajantes, também. Alternativas são indispensáveis, mas têm de ser realistas e viáveis. Quem as negociará, em nome da massa policial? Quem gritar mais alto na praça pública? Quem comandar nas ruas um movimento que chantageia o governo e o obriga a ceder ao lider de ocasião, sem organicidade representativa? Quem dispuser de carisma e audácia para sensibilizar assembléias, pavimentando carreiras político-partidárias posteriores, sem qualquer compromisso com a reforma da segurança no país e os mais elevados interesses da sociedade e das instituições? Essa tem sido a via brasileira para a selvageria despolitizada e o oportunismo de demagogos, que não enxergam um milímetro além do corporativismo mais estreito, fazendo eco à insensibilidade das autoridades e à apatia governamental. A alternativa a esse mundo desastroso é a sindicalização, não dos servidores das PMs tais como elas existem, o que seria impraticável e inconstitucional, mas dos membros de uma organização de novo tipo, regida por novos marcos constitucionais. Quando trabalhadores sentem-se oprimidos, não encontram canais de participação, não têm acesso a instrumentos de associação e representação, a energia represada transborda e se converte em combustível de explosões que produzem efeitos negativos para a sociedade, governos e a própria categoria profissional. Sem sindicatos, com associações semi-clandestinas e mutiladas, os trabalhadores se dividem, não acumulam experiência, não estabelecem negociações regulares, não amadurecem, politicamente, e terminam envolvidos em movimentos disruptivos nos quais destacam-se os mais impetuosos, cuja liderança negativa acaba sendo fortalecida por governantes acuados, os quais, tendo negligenciado entendimentos orgânicos, cedem às circunstâncias e recuam, na emergência.
Mas há pressupostos a esclarecer para que minha análise seja compreendida.
Na raiz do caos está a arquitetura institucional da segurança pública legada pela ditadura, que passou intocada pela transicão democrática, encontrou abrigo na Constituição e permanece excluída da agenda pública. O artigo 144 atribui, em matéria de segurança, grande responsabilidade aos estados e suas polícias, cujo ciclo de trabalho é, irracionalmente, dividido entre militares e civis; confere papel apenas coadjuvante à União e esquece dos municípios, na contramão do que ocorre com as demais políticas públicas. As PMs são definidas como força reserva do Exército e submetidas a um modelo organizacional concebido à sua imagem e semelhança. Por isso, têm até 13 níveis hierárquicos, uma estrutura fortemente verticalizada e rígida, e regimentos disciplinares próprios, cuja constitucionalidade é, aliás, no caso das PMs, mais do que duvidosa. A boa forma de uma organização é aquela que melhor serve ao cumprimento de suas funções. As características organizacionais do Exército atendem à sua missão constitucional, porque tornam possível o “pronto emprego”, qualidade essencial às ações bélicas destinadas à defesa nacional. Nesse contexto, entende-se o veto à sindicalização.
A missão das polícias no Estado democrático de direito é inteiramente diferente daquela que cabe ao Exército. O dever das polícias é prover segurança aos cidadãos, garantindo o cumprimento da Lei, ou seja, protegendo seus direitos e liberdades contra eventuais transgressões que os violem. No repertório cotidiano das atividades das PMs, confrontos armados que exigem pronto-emprego representam menos de 1%. Não faz sentido estruturar toda uma organização para atender a 1% de suas ações. Para estas, bastam unidades especiais, configuradas para tais finalidades. O funcionamento usual das instituições policiais com presença uniformizada e ostensiva nas ruas, cujos propósitos são sobretudo preventivos, requer, dada a variedade, a complexidade e o dinamismo dos problemas a superar, os seguintes atributos: descentralização; valorização do trabalho na ponta; flexibilidade no processo decisório nos limites da legalidade, do respeito aos direitos humanos e dos princípios internacionalmente concertados que regem o uso comedido da força; plasticidade adaptativa às especificidades locais; capacidade de interlocução, liderança, mediação e diagnóstico; liberdade para adoção de iniciativas que mobilizem outros segmentos da corporação e intervenções governamentais inter-setoriais. Idealmente, o(a) policial na esquina é um(a) micro-gestor(a) da segurança em escala territorial limitada com amplo acesso à comunicação intra e extra-institucional, de corte horizontal e transversal.
Engana-se quem acredita que mais rigor hierárquico, mais centralização, menos autonomia na ponta e regimentos mais duros garantem mais controle interno, menos corrupção, desmandos e brutalidade. Se fosse assim, nossas polícias militares seriam campeãs de virtude. Pelo contrário, sacrificamos a eficiência no altar da disciplina para colher tempestades e saldos negativos em todos os fronts.
Não há nenhuma razão para que as PMs copiem o modelo organizacional do Exército, o que não as impediria, necessariamente, de adotar elementos da estética, da ética e da ritualística militar. Nesse novo contexto, a sindicalização tornar-se-ia legal e legítima. Quem teme sindicatos e supõe possível manter a ordem reprimindo demandas dos trabalhadores, proibindo sua organização, não compreende a história social e as lições que as lutas trabalhistas nos ensinaram. Não entende que o veto à organização provoca efeitos perversos para todos e planta uma bomba de efeito retardado sob nossos pés.
Eis aí, portanto, mais uma razão para rever o artigo 144 da Constituição e para buscar um consenso nacional mínimo em torno de uma arquitetura institucional alternativa e de um outro modelo policial. Em benefício dos policiais e da eficiência na provisão de segurança pública, que interessa ao conjunto da sociedade, sobretudo aos mais pobres e vulneráveis.
Fonte: http://www.luizeduardosoares.com/?p=829
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