A Polícia Militar brasileira é um modelo anacrônico de segurança pública que favorece abordagens policiais violentas, com desrespeito aos direitos fundamentais do cidadão
Por Túlio Vianna
Uma das heranças mais malditas que a ditadura militar nos deixou é a dificuldade que os brasileiros têm de distinguir entre as funções das nossas Forças de Segurança (polícias) e as das nossas Forças Armadas (exército, marinha, aeronáutica). A diferença é muito simples: as Forças de Segurança garantem a segurança interna do Estado, enquanto as Forças Armadas garantem a segurança externa. Polícias reprimem criminosos e forças armadas combatem exércitos estrangeiros nos casos de guerra.
Diante das desmensuradas diferenças de funções existentes entre as Forças de Segurança e as Forças Armadas, é natural que seus membros recebam treinamento completamente diferente. Os integrantes das Forças Armadas são treinados para enfrentar um inimigo externo em casos de guerra. Nessas circunstâncias, tudo que se espera dos militares é que matem os inimigos e protejam o território nacional. Na guerra, os prisioneiros são uma exceção e a morte é a regra.
As polícias, por outro lado, só deveriam matar nos casos extremos de legítima defesa própria ou de terceiro. Seu treinamento não é para combater um inimigo, mas para neutralizar ações criminosas praticadas por cidadãos brasileiros (ou por estrangeiros que estejam por aqui), que deverão ser julgados por um poder próprio da República: o Judiciário. Em suma: enquanto os exércitos são treinados para matar o inimigo, polícias são treinadas para prender cidadãos. Diferença nada sutil, mas que precisa sempre ser lembrada, pois muitas vezes é esquecida ou simplesmente ignorada, como na intervenção no Complexo do Alemão na cidade do Rio de Janeiro ou em tantas outras operações na qual o exército tem sido convocado para combater civis brasileiros.
O militarismo se justifica pelas circunstâncias extremas de uma guerra, quando a disciplina e a hierarquia militares são essenciais para manter a coesão da tropa. O foco do treinamento militar é centrado na obediência e na submissão, pois só com estas se convence um ser humano a enfrentar um exército inimigo, mesmo em circunstâncias adversas, sem abandonar o campo de batalha. Os recrutas são submetidos a constrangimentos e humilhações que acabam por destituí-los de seus próprios direitos fundamentais. E se o treinamento militar é capaz de convencer um soldado a se deixar tratar como um objeto na mão de seu comandante, é natural também que esse soldado trate seus inimigos como objetos cujas vidas podem ser sacrificadas impunemente em nome da sua bandeira.
A sociedade reclama do tratamento brutal da polícia, mas insiste em dar treinamento militar aos policiais, reforçando neles, a todo momento, os valores de disciplina e hierarquia, quando deveria ensiná-los a importância do respeito ao Direito e à cidadania. Se um policial militar foi condicionado a respeitar seus superiores sem contestá-los, como exigir dele que não prenda por “desacato à autoridade” um civil que “ousou” exigir seus direitos durante uma abordagem policial? Se queremos uma polícia que trate suspeitos e criminosos como cidadãos, é preciso que o policial também seja treinado e tratado como civil (que, ao pé da letra, significa justamente ser cidadão).
O treinamento militarizado da polícia brasileira se reflete em seu número de homicídios. A Polícia Militar de São Paulo mata quase nove vezes mais do que todas as polícias dos EUA, que são formadas exclusivamente por civis. Segundo levantamento do jornal Folha de S. Paulo divulgado em julho deste ano, “de 2006 a 2010, 2.262 pessoas foram mortas após supostos confrontos com PMs paulistas. Nos EUA, no mesmo período, conforme dados do FBI, foram 1.963 ‘homicídios justificados’, o equivalente às resistências seguidas de morte registradas no estado de São Paulo”.Neste estado, são 5,51 mortos pela polícia a cada 100 mil habitantes, enquanto o índice dos EUA é de 0,63 . Uma diferença bastante significativa, mas que, obviamente, não pode ser explicada exclusivamente pela militarização da nossa polícia. Não obstante outros fatores que precisam ser levados em conta, é certo, porém, que o treinamento e a filosofia militar da PM brasileira são responsáveis por boa parte desses homicídios.
Nossa Polícia Militar é uma distorção dos principais modelos de polícia do mundo. Muitos países europeus possuem gendarmarias, que são forças militares com funções de polícia no âmbito da população civil, como a Gendarmerie Nationale na França, os Carabinieri na Itália, a Guardia Civil na Espanha e a Guarda Nacional Republicana em Portugal. As gendarmarias, porém, são bem diferentes da nossa Polícia Militar, a começar pelo fato de serem nacionais, e não estaduais. Em geral, as atribuições de policiamento das gendarmarias europeias se restringem a áreas rurais, cabendo às polícias civis o policiamento, tanto ostensivo como investigativo, das áreas urbanas, o que restringe bastante o âmbito de atuação dos militares. As gendarmarias europeias também são polícias de ciclo completo, isto é, realizam não só o policiamento ostensivo, mas também são responsáveis pela investigação policial.
No Brasil, a Constituição da República estabeleceu no seu artigo 144 uma excêntrica divisão de tarefas, na qual cabe à Polícia Militar realizar o policiamento ostensivo, enquanto resta à Polícia Civil a investigação policial. Esta existência de duas polícias, por óbvio, não só aumenta em muito os custos para os cofres públicos que precisam manter uma dupla infraestrutura policial, mas também cria uma rivalidade desnecessária entre os colegas policiais que seguem duas carreiras completamente distintas. O jovem que deseja se tornar policial hoje precisa optar de antemão entre seguir a carreira de policial ostensivo (militar) ou investigativo (civil), criando um abismo entre cargos que seriam visivelmente de uma mesma carreira.
Nos EUA, na Inglaterra e em outros países que adotam o sistema anglo-saxão, as polícias são compostas exclusivamente por civis e são de ciclo completo, isto é, o policial ingressa na carreira para realizar funções de policiamento ostensivo e, com o passar do tempo, pode optar pela progressão para os setores de investigação na mesma polícia. Para que se tenha uma ideia de como esse sistema funciona, um policial no Departamento de Polícia de Nova York (NYPD) ingressa na carreira como agente policial (police officer) para exercer atividades de polícia ostensiva (uniformizado), tais como responder chamadas, patrulhar, perseguir criminosos etc. Depois de alguns anos, esse agente policial pode postular sua progressão na carreira para o cargo de detetive (detective) no qual passará a exercer funções investigativas e não mais usará uniformes. A carreira segue com os cargos de sargento (sergeant), que chefia outros policiais; de tenente (lieutenant), que coordena os sargentos; e de capitão (captain), que comanda o que chamaríamos de delegacia.
Apesar do que a semelhança dos nomes poderia sugerir, não se trata de patentes, mas de cargos, pois todos são funcionários públicos civis. Cada policial está subordinado apenas a seus superiores hierárquicos em linha direta, assim como um escrivão judicial brasileiro está subordinado ao juiz com o qual trabalha. Um agente policial estadunidense não está subordinado de qualquer forma às ordens de um capitão de uma unidade policial que não é a sua, assim como o escrivão judicial brasileiro não deve qualquer obediência a juízes de outras varas. Para se ter uma ideia da importância dessa diferença, basta imaginar a situação difícil em que fica um policial militar brasileiro ao parar, em uma blitz, um capitão a quem, para início de conversa, tem o dever de prestar continência. A hierarquia militar acaba funcionando, em casos como esse, como uma blindagem para os oficiais, em um nítido prejuízo para o princípio republicano da igualdade de tratamento nos serviços públicos.
As vantagens de uma polícia exclusivamente civil são muitas e, se somadas, a unificação das polícias ostensiva e investigativa em uma única corporação de ciclo completo só traz benefícios para os policiais, em termos de uma carreira mais atrativa, e aos cidadãos, com um policiamento único e mais funcional.
No Brasil, tramita no Senado da República a Proposta de Emenda à Constituição nº 102/2011, de autoria do senador Blairo Maggi (PR/MT), que, se aprovada, permitirá aos estados unificarem suas polícias em uma única corporação civil de âmbito estadual, representando um avanço imensurável na política de segurança pública brasileira, além de uma melhor aplicação do dinheiro público, que não mais terá que sustentar duas infraestruturas policiais distintas e, algumas vezes, até mesmo concorrentes.
A unificação das polícias também possibilitaria uma carreira policial bem mais racional do que a que temos hoje. O policiamento ostensivo é bastante desgastante e é comum que, à medida que o policial militar envelhece, ele acabe sendo designado para atividades que exijam menor vigor físico. Como atualmente existem duas polícias e, portanto, duas carreiras policiais distintas, os policiais militares acabam sendo designados para tarefas internas, típicas de auxiliar administrativo, mas permanecem recebendo a mesma remuneração de seus colegas que arriscam suas vidas nas ruas. Com a unificação, ocorreria o que acontece na maioria das polícias do mundo: ele seria promovido para o cargo de detetive e sua experiência como policial ostensivo seria muito bem aproveitada na fase de investigação. Para suprir os cargos administrativos meramente burocráticos, bastaria fazer concursos para auxiliares administrativos que requerem vocação, habilidades e treinamento bem mais simples daqueles exigidos de um policial.
Por outro lado, os policiais civis que realizam o trabalho de investigação atualmente são recrutados por meio de concursos públicos e começam a exercer suas atividades investigativas sem nunca terem tido experiência policial nas ruas. Com a unificação da polícia, o ingresso se daria sempre para o cargo de policiamento ostensivo, no qual o policial ganharia experiência e só então poderia ascender na carreira para os cargos de investigação. Um modelo que privilegia a experiência prática, e não o conhecimento técnico normalmente exigido em provas de concursos.
Finalmente, a unificação das polícias acabaria também com os julgamentos de policiais pela Justiça Militar. Pelo atual sistema, os crimes praticados por policiais militares em serviço (exceto crimes dolosos contra a vida de civis) são julgados não pelo juiz criminal comum, mas pela Justiça Militar, em uma clara violação do princípio republicano da isonomia. É como se as universidades federais tivessem uma Justiça Universitária para julgar os crimes praticados por professores durante as aulas; ou as indústrias tivessem uma Justiça Industrial para julgar os crimes praticados por metalúrgicos em serviço. Uma espécie de universo paralelo jurídico que só se explica pela força política dos militares quando da promulgação da Constituição de 1988.
Desmilitarizar e unificar as polícias estaduais brasileiras é uma necessidade urgente para que haja avanços reais na nossa política de segurança pública. Vê-se muito destaque na mídia para projetos legislativos que demagogicamente propõem o aumento de penas e outras alterações nos nossos códigos Penal e de Processo Penal como panaceia para o problema da criminalidade. Muito pouco se vê, porém, quanto a propostas que visem a repensar a polícia brasileira.
De nada adianta mudar a lei penal e processual penal se não se alterar a cultura militarista dos seus principais aplicadores. Treinem a polícia como militares e eles tratarão todo e qualquer suspeito como um militar inimigo. Treinem a polícia como cidadãos e eles reconhecerão o suspeito não como “o outro”, mas como alguém com os seus mesmos direitos e deveres. Nossa polícia só será verdadeiramente cidadã quando reconhecer e tratar seus próprios policiais como civis dotados dos mesmos direitos e deveres do povo para o qual trabalha.
Revista Fórum
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